Brincar: a atividade
mais séria da criança
Por Renate Keller Ignácio
Brincar, para a criança,
é tão importante e sério como trabalhar é para o adulto. Ou mais até, porque
dificilmente encontramos um adulto tão dedicado ao seu trabalho como a criança
o é à sua brincadeira. O trabalho é dirigido de fora, pelas necessidades e metas
dos adultos. Brincar brota de dentro da criança. Brincando, a criança imita o
trabalho, os gestos do adulto. Assim, ela descobre o mundo. Ela vivencia suas
leis sem fazer conceitos lógicos sobre elas. Quando ela brinca com água,
experimenta como se formam as gotinhas e vê como o sol brilha nelas. Ou joga
pedrinhas numa poça d\'água e acompanha os círculos concêntricos que vão se
abrindo cada vez mais até chegar na beirada. Ou faz um barquinho de bambu ou de
casca de árvore e fica alegre quando este flutua. Isto tudo para a criança é
pura vivência.
Se o adulto tenta levar estas experiências à consciência da criança, formulando
com ela leis básicas de física, ele estraga a brincadeira, afastando a criança
da ação e do movimento e separando-a do mundo ao qual ela ainda está totalmente
unida. A criança pequena é inteiramente força de vontade. Ela só quer agir,
transformar, brincar. Nunca pára quieta.
Se o adulto apóia essa força de vontade, dando espaço para a criança brincar
sadiamente, quando a criança se tornar adulta também terá vontade de agir e de
transformar o mundo. Hoje em dia, muitas vezes só se dá valor à inteligência e,
quando se pensa em educação, só se pensa em educação do pensar lógico. Mas o
homem não é feito só de cabeça, ele também tem coração e membros. Ele não só
pensa, como também sente e age. E, principalmente antes dos sete anos, podemos
fortalecer a vontade de agir.
A necessidade de brincar é inserida no organismo da criança. Esse organismo,
quando nasce, ainda não está pronto. Os órgãos estão apenas esboçados. O
esqueleto ainda é maleável. Podemos sentir a moleira na cabeça do nenê, sinal
de que ela ainda está aberta para as forças plasmadoras que estão formando o
cérebro. Grandes forças vitais plasmam o organismo da criança, continuando e
aperfeiçoando o trabalho que foi começado no útero materno. São forças da
natureza que trabalham ritmicamente, num ritmo de dia e noite e de respiração
(concentrando-se na inspiração e expandindo-se na expiração). Podemos imaginar
essa força, também, como um artista cósmico que modela com grande sabedoria o
organismo da criança. O trabalho desse "artista" está em grande parte
terminado no sétimo ano de vida, quando a criança troca os dentes. Até os sete
anos, tudo o que a criança faz tem como origem esse processo plasmador que está
acontecendo em seu interior. Por isso, a criança não pode parar quieta e tem de
brincar. Esse ato de brincar não possui finalidade lógica imposta de fora, mas
segue os impulsos inconscientes que têm sua origem dentro do organismo.
Uma criança pode fazer uma casinha de panos, dali a pouco tira o pano da parede
e embrulha nele o seu nenê para passear. Logo ela junta as cadeiras para formar
um ônibus, mas, de repente, vê algumas pedrinhas no chão, que são os peixinhos
que ela vai pescar. O barco é uma casca de coco. Quando a casca está cheia,
despeja tudo no chão porque quer usar o coco como panelinha, enchendo-o
novamente com serragem e pondo-o no fogão, que ela monta com pedacinhos de pau.
Assim vai, sem nenhuma constância, pulando de um brinquedo para outro. Por
isso, muitas vezes, os adultos não consideram que brincar seja uma atividade
séria, ou então se assustam, achando que a criança começa tudo sem terminar
nada. Mas, observando e estudando mais profundamente o que acontece com a
criança antes dos sete anos, compreendemos que brincar é uma necessidade
orgânica, e que a forma como a criança se expressa, e os brinquedos que damos
para ela, têm uma profunda influência sobre o trabalho plasmador que ocorre no
interior de seu organismo porque, ao mesmo tempo em que a criança está
totalmente voltada para o seu interior, ela é aberta e muito sensível a tudo o
que está ao seu redor. Forma, cor e decoração da sala, o tipo de brinquedos e
tudo o que a criança vivencia em seu meio ambiente fazem-lhe impressões no
sentido mais literal da palavra: imprimem-se em seu corpo físico e determinam
saúde ou doença, para a vida toda.
A sala deve ser sempre aconchegante, quase como que abraçando a criança. Nunca
como uma sala de aula ou sala de hospital, grande, branca, fria. Quando a
criança entra na sala, ela deve ter o sentimento: "Esta é minha casa, como
ela é bonita!" É muito bom quando a sala tem vários cantinhos separados
por biombos ou cavaletes leves, cobertos por panos, onde as crianças podem se
esconder, brincar de casinha e formar grupinhos menores. Os brinquedos devem
ser os mais simples possíveis. Quanto mais simples for um brinquedo, mais a
criança se tornará ativa em seu interior, em sua fantasia. Uma boneca, por
exemplo, pode ser um pano de algodão amarrado no meio, para formar a cabeça, e
dois nós, em duas pontas, como mãos. Quando a criança brinca com esta boneca,
ela tem de fazer o esforço da fantasia, para imaginar os olhos, a boca, os
cabelos etc. Ela conversa com a boneca e a faz chorar, rir, comer. Esse
movimento interior da fantasia é tão importante para a criança como o movimento
de seu corpo físico. Se déssemos uma boneca "perfeita", que pisca os
olhos, tem um rosto bem definido, chora, anda, faz xixi "de verdade",
é como se puséssemos então a fantasia da criança numa camisa-de-força, e ela se
atrofia. Assim, também o ,corpo da criança se atrofia quando não se movimenta o
suficiente. E certo que uma criança, com cinco ou seis anos, quer uma boneca um
pouco mais requintada. Podemos então fazer uma boneca de pano para ;ela, com
braços, pernas, roupas, cabelos e um rosto pintado ou bordado, talvez dois
pontinhos indicando os olhos, outro a boca - de qualquer forma, sem expressão
definida.
A boneca é a imagem do ser humano. A criança a imita e se identifica com ela.
Sempre temos de ter isso em mente quando fazemos ou compramos uma boneca para
ela. (*)
Existe o preconceito de que só as meninas devem brincar com boneca, e que os
meninos já devem mostrar uma certa dureza, lutando com outros meninos, chutando
bola ou brincando até com revólver, para mostrar que eles já são pequenos
machos. Como é que vamos ter pais de família sensíveis e carinhosos se nós já
pomos na cabeça dos meninos pequenos que carinho é coisa de mulher? Observei,
muitas vezes, meninos pegando uma boneca escondidos dos outros e levando-a para
um cantinho onde ninguém pudesse observá-los. Ali, então, ele brincava gostoso,
conversava com a filhinha, dava mamadeira para ela, trocava a roupa dela,. e
seus olhos brilhavam felizes. Mas se nessa hora alguém diz: "Que é isto?
Menino brincando com boneca?", seu rosto se fecha e podemos observar uma
grande decepção, que é compensada, depois, com brincadeiras brutas,
"brincadeiras de meninos", agressões. O contrário também acontece:
menina tem de ser toda delicadeza, não pode sujar-se, não pode correr, não pode
trepar em árvores, nem soltar pipa etc. Ela tem de ficar em casa cuidando do
serviço, logo cedo. Se compreendermos como o ato de brincar livremente com a
fantasia é importante para o desenvolvimento do ser humano, independente de ser
homem ou mulher, podemos ter uma idéia de como estes preconceitos são
prejudiciais.
Fonte: "Criança Querida - O dia-a-dia das creches e
jardim-de-infância" de Renate Keller Ignácio (páginas 25, 26, 27 e
28) - Editora Antroposófica
*Veja também: Evelyn Scheven: "Minha Querida Boneca".
SAIBA MAIS SOBRE A
SEMANA MUNDIAL DO BRINCAR:
http://www.aliancapelainfancia.org.br/