Crianças cavando um "rio" na caixa de areia - Jardim Alecrim Recife |
O que está acontecendo com o modo de brincar das
crianças?
Durante
as últimas duas décadas, temos progressivamente corrompido o modo de brincar
das crianças, assumindo o controle e alterando a cultura lúdica da infância.
Brincar é o portal da criança para o conhecimento de si
mesma e do mundo
Ao
reinventar a experiência brincando, ela dá significado e valor à confusão
estonteante da vida. O bebê transforma todo objeto que toca em algo a ser
sugado. Desse modo, passa a conhecer os limites de sugar e a natureza dos
objetos. Pela imitação de papeis adultos no jogo dramático, o pré-escolar
descobre novos potenciais e capacidades humanas. A criança em idade escolar
transforma objetos lúdicos, como peças do jogo de damas ou de xadrez e bolas de
futebol ou beisebol, em ferramentas valiosas de intercambio social. Todas essas
reinvenções contribuem para que ela amplie sua compreensão da realidade pessoal
e social.
Durante
as últimas duas décadas, entretanto, temos progressivamente corrompido o modo
de pensar das crianças. Temos feito isso assumindo o controle e alterando a
cultura lúdica da infância. Até pouco tempo atrás, havia uma rica linguagem e
um saber que eram exclusivos às crianças e que eram transmitidos pela tradição
oral. Eles consistiam de jogos, piadas, charadas, superstições e encantamentos
que foram sendo revistos pelas sucessivas gerações conforme as transformações
nas circunstancias sociais. Hoje, contudo, poucas crianças conhecem canções
como Rain, rain go away, come again another day (“Vá, vá embora, chuva, e volte
no outro dia” – Canção tradicional inglesa da época da Rainha Elisabeth I).
Elas também não entendem as palavras mágicas “Step on a crack and break you
back” (“Pise numa rachadura e quebre a espinha”. Segundo a superstição, comum
entre as crianças e originária do século XIX, pisar nas trilhas do calcamento
dá azar). As crianças contemporâneas conhecem, sobretudo a cultura da Disney,
Pokemón e Yogiyo, que nós, adultos, criamos para elas. Essa cultura lúdica
virtual é desonesta porque, embora se apresente como brincadeira de criança,
não é criada pelas próprias crianças.
Quando criamos brincadeiras para as crianças,
principalmente para as pequenas, apropriamo-nos antecipadamente de seu
crescimento. Nós as privamos das oportunidades de aprenderem
a seu próprio modo e em seu próprio ritmo. Isso não quer dizer que não tentemos
criar ou educar as crianças, mas apenas que o façamos de maneira que tenham
sentido, que sejam significativas e motivadoras para elas.
Eis um
bom exemplo de uma mãe, com todas as boas intenções, tentando interferir no
modo de brincar de seu bebê (Greoline, 1972, p. 13):
“Uma
jovem mãe senta-se junto ao berço de seu primeiro filho (para o segundo já há
menos tempo) e observa como ele tenta diversas vezes colocar um cubo vermelho
sobre um azul. Depois de certo tempo observando isso, ela pergunta: ‘E onde
está aquela sua bonequinha adorável?’. A criança abandona os cubos, procura a
boneca e começa a lamber o rosto dela, e fica lambendo, lambendo até a mãe
trazer o urso para a cena. ‘Grr, grr, aí vem o velho urso’. A criança brinca
com ele com as mãos e por fim mexe uma perna para cima e para baixo, até que, é
claro, a mãe entedia-se e chama a atenção da criança para a bola. Educadamente,
a criança deixa-se distrair pela terceira vez e brinca com a bola. Assim, a mãe
passa uma tarde agradável e está totalmente inconsciente de como ela interfere
na persistência e na capacidade de concentração de seu filho. Ela impede que
ele se acostume a perseverar em uma atividade e a se ocupar inteiramente com
alguma coisa durante um longo período de tempo”.
Isso
é exatamente o que acontece quando os pais de hoje colocam uma criança em
frente a uma tela de computador, ou lhes dão brinquedos que são tão programados
que deixam pouco ou nenhum espaço para a criança explorá-lo em seu próprio
ritmo e a seu próprio modo.
Efeitos do brincar virtual prematuro
Quando as
crianças são introduzidas no mundo virtual ao mesmo tempo em que são expostas
ao mundo real, ou até antes disso, brincar perde muitas de suas funções
adaptativas. Compare-se um bebê que sacode um chocalho para ouvir um som com
outro que aperta um botão para ouvir uma vaca mugir. No mundo real, sacudir um
chocalho realmente faz barulho, mas apertar um botão não faz uma vaca mugir.
Quando deixados com seus próprios recursos, os bebês descobrem o mundo físico
real. Como declara Richard Hartacher (1967, p. 27):
“Para o
bebê, os brinquedos são objetos experimentais totalmente apoéticos que servem
para explorar os santificados domínios da física. A exploração da física,
portanto, começa muito antes da escola secundária. Bola, chocalho, colher, tudo
cai no chão. Mas o som é diferente a cada vez. Pela repetição contínua, o
ouvido aprende a distinguir as diferentes qualidades do som produzido pelos diversos
objetos”.
Aprender
a operar no mundo virtual é, em certos aspectos, mais fácil do que aprender a
operar o mundo real. Ligar a televisão é um caso pertinente. Contudo,
grande parte do mundo da televisão não é a realidade. O brincar
virtual é corruptor porque impede a criança de adquirir muitas habilidades
pessoais/sociais e o conhecimento físico que só pode ser obtido brincando-se no
mundo real.
Quando os
adultos assumem o controle sobre as brincadeiras e os jogos das crianças, eles
necessariamente subtraem a capacidade delas de reinventar sua experiência. E é
somente através dessa reinvenção que as crianças são capazes de extrair todos
os benefícios do brincar para o desenvolvimento.
A
importância de “brincar de verdade”
A
despeito das afirmações acerca dos benefícios do Lapware e de programas como
Telletubbies, não existem dados que apóiem os benefícios intelectuais, sociais
ou comportamentais desse tipo de atividade virtual. Na verdade, a maioria dos
dados sugere que esses programas provavelmente fazem mais mal do que bem. Por
exemplo, temos assistido Vila Sésamo há mais de 30 anos. As crianças de hoje
conhecem números e letras em idade mais precoce do que nunca; porém, não estão
aprendendo a ler ou fazer cálculos mais cedo e melhor do que crianças que nunca
assistiram a Vila Sésamo. De fato, considerando-se o número de crianças que
estão sendo retidas no jardim de infância porque ainda não têm habilidades, o
aprendizado precoce pode estar tendo um efeito negativo.
Um estudo
de Hirsch-Pasek (1991) é instrutivo a esse respeito. A pesquisadora comparou
crianças que freqüentam pré-escolas acadêmicas com outras que freqüentam
pré-escolas centradas nas crianças e orientadas a brincar. As crianças que
freqüentavam as pré-escolas acadêmicas eram menos criativas e mais ansiosas do
que as que freqüentavam as pré-escolas que davam ênfase ao brincar. Elas também
gostavam menos da escola do que as crianças com as quais foram comparadas. Os
pré-escolares ensinados academicamente sabiam números e letras melhor do que o
grupo que brincava, mas essas vantagens eram dissipadas quando as crianças
ingressavam no jardim de infância???
Um estudo
mais recente, de Coolahan, Fantuzzo e Mendez (2000), oferece mais evidencias
sobre a importância de brincar no mundo real para crianças dessa faixa etária.
Esses pesquisadores constataram que as crianças que possuem competência para
brincar com seus amigos participam mais ativamente das atividades em sala de
aula do que as que carecem dessas habilidades. Na realidade, as crianças que
são inaptas para brincar são destrutivas ao brincar com os amigos e tendem a
apresentar problemas de conduta e hiperatividade na sala de aula. (Coolahan er
al., 2000). Essas são as crianças que mais provavelmente se ocupam com o
brincar virtual antes do real.
Evidências
ainda mais convincentes da importância de brincar provêm de outros países
ocidentais que fizeram experiências com instrução acadêmica precoce,
contraposta ao brincar no mundo real. Um relatório da Comissão Real Britânica
incluía o seguinte parágrafo (Commons, 2000, p 122-123):
“A
comparação com outros países sugere que não existe benefício em iniciar a
instrução formal antes dos seis anos. A maioria dos outros países europeus
admite as crianças à escola aos seis ou sete anos, após um período de três anos
de educação pré-escolar que se concentra no desenvolvimento social e físico.
Entretanto, os padrões de leitura e escrita e a capacidade aritmética costumam
ser mais elevados nesses países do que na Grã-Bretanha, a despeito de ingressarem
na escola em idade mais precoce”.
Os
efeitos de corromper o modo de brincar das crianças ficam mais evidentes quando
elas ingressam na escola. Aí que a falta de habilidades pessoais, sociais e
oriundas do brincar torna-se mais visível. Falta de respeito pelos professores,
intimidações, trapaças e incapacidade de concentração por longos períodos são
hoje lugar-comum. Esse novo ambiente social é, ao menos em parte, atribuível à
ausência de experiência lúdica no mundo real. Conseqüentemente, grande parte do
tempo do professor é atualmente dedicada à disciplina, em vez de dedicada à
instrução. E isso em uma época em que as demandas acadêmicas são maiores do que
em qualquer período anterior. Esta é apenas uma amostra das evidencias dos
efeitos negativos de impor realidades virtuais criadas por adultos às crianças
antes de elas terem lidado com o mundo real a seu próprio modo.
Com
certeza, sempre existiu alguma realidade virtual nas vidas das crianças
pequenas. Nos contos de fada infantis, existem animais que falam e que se
comportam como humanos, como em Os Três Ursinhos ou Os Três Porquinhos. No
entanto, essas histórias encontram correspondência no modo de pensar das
crianças pequenas, pois estas projetam qualidades humanas sobre os animais, de
modo que os contos de fada tendem a condizer com seu modo de pensar. Como
Bettelheim deixou claro, muitos contos de fada possuem um efeito terapêutico.
Os personagens da realidade virtual, contudo, são fantásticos e não coincidem
realmente com o pensamento infantil. Um bebê com uma tela de televisão na
barriga ou um homem-esponja não são personagens que as crianças evocariam
sozinhas. E é questionável se esses personagens terapêuticos. A necessidade
primordial dos bebês é estabelecer vínculos com adultos significativos, e não
com figuras bidimensionais animadas.
Reformando o brincar das crianças
Os
efeitos negativos de uma exposição prematura à realidade virtual são mais
intensos nos primeiros anos de vida. Precisamos limitar o tempo que bebês e
crianças pequenas passam em frente à televisão: no máximo duas horas por dia e,
se possível menos do que isso. Um bom kit de blocos de madeira é um dos
melhores brinquedos que podemos dar para uma criança pequena. Outros materiais
plásticos, como tintas e argila, oferecem, às crianças a oportunidade de
brincarem sozinhas.
As
experiências no mundo real são muito importantes para as crianças pequenas. A
jardinagem é uma grande atividade interessante, pois elas plantam e vêem
as plantas crescerem. Passeios ao ar livre e visitas a museus e aquários também
ajudam a colocar as crianças em contato com a natureza. Não vejo nenhuma
justificativa para colocá-las em esportes organizados ou individuais durante os
anos de pré-escola. Por outro lado, as crianças pequenas devem ter a
oportunidade de brincar com os amigos a seu próprio modo e com suas invenções.
Disponibilizar acessórios como roupas, chapéus e sapatos para serem utilizados
por elas em representações teatrais também são muito úteis. Em faixas etárias
mais avançadas, precisamos monitorar a televisão e o envolvimento com a
Internet e insistir para que as crianças tenham períodos de intervalo a fim de
brincar com seus próprios recursos. Estabelecer um horário semanal para brincar
em família é outro modo de garantirmos que as crianças aprendam as habilidades
sociais e intelectuais oriundas de brincar no mundo real, dedicado a jogar,
fazer uma tranqüila refeição em família ou visitar um parque, museu ou
zoológico.
O mundo
virtual da tecnologia moderna está aqui para ficar, e as crianças certamente
precisam aprender a viver e operar nele. Meu argumento é apenas que elas
precisam aprender e operar no mundo real antes de começar a viver e lidar com o
mundo virtual. É preciso ter raízes alem de asas. Brincar de verdade dá à
crianças as raízes; o brincar virtual lhes dá suas asas. Elas precisam de ambas
e na ordem certa.
David
Elkind - Doutor em Psicologia Clínica e professor de Desenvolvimento da
Criança na Tufts University, em Medford, MA (Estados Unidos).
Artigo publicado em: http://www.antroposofy.com.br/wordpress/o-que-esta-acontecendo-com-o-modo-de-brincar-das-criancas/
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